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A carta que não houve

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É um dos episódios mais vergonhosos da história do jornalismo: em 1978, a El Gráfico (uma revista que um dia existiu na Argentina*), publicou o que seria uma carta escrita pelo jogador holandês Krol, finalista do Mundial, para sua filha.

“Mamãe me contou que outro dia você chorou muito porque alguns amiguinhos te disseram coisas muito feias que estariam acontecendo na Argentina. (…) É mentira, aqui tudo é tranquilidade e beleza. (…) Não se assuste ao ver fotos da nossa concentração com soldadinhos de verde ao nosso lado. Eles são nossos amigos, nos cuidam e nos protegem”.

É tétrico: a Argentina vivia sob uma ditadura militar que custou a vida de pelo menos 8 mil pessoas.

Krol, é claro, jamais escreveu essa coleção de bobagens. Sua assinatura foi roubada do press kit da seleção da Holanda, que trazia autógrafos de todo o elenco. Tratou-se de uma das mais brilhantes peças de marketing político endossada justamente por quem deveria nos proteger dessa espécie de estrume.

*A El Grafico tinha os maiores jornalistas do país e morreu duas vezes: naquele dia 13 de junho de 1978 e duas décadas depois, quando foi abatida pela crise do jornalismo impresso e praticamente se transformou numa revista-laboratório de faculdade.

Uma bomba na redação – 37 anos antes do Charlie Hebdo

O ataque ao Charlie Hebdo não foi o primeiro a uma publicação, digamos, satírico-anarquista. Em 1977, a sede da revista espanhola El Papus (em muito parecida com o semanário francês) foi palco de um atentado a bomba quando ocorria a reunião de pauta (outra semelhança). O zelador do prédio morreu e outras 17 pessoas ficaram feridas.

Não houve condenados pelo crime, atribuído a um grupo de extrema-direita que já havia feito ameaças a jornalistas da publicação – lembremos que a Espanha recém havia saído dos sombrios 40 anos de ditadura sob as mãos de ferro de Franco. Um cenário onde a intolerância grassava.

O documentário “El Papus, anatomia de um atentado“, revisita esse clima de terror, tenta explicar o porquê da impunidade e, especialmente, reverencia a irreverência da publicação, capitaneada pelo trabalho de talentosos cartunistas (como o jornal francês). A El Papus acabaria fechando as portas em 1986.

“Como não sabiam desenhar, tinham de usar uma arma. Dizem que a caneta tem mais poder que a arma. Claro que não, a arma é mais poderosa”, diz um entrevistado a certa altura.

Profético.

Inspirador do Pasquim será digitalizado

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O jornal que inspirou o Pasquim vai ter a memória preservada. A Biblioteca Central da UFMG já está digitalizando a doação da coleção completa da publicação, que nos 50 e 60 ironizou os costumes e a política mineira e nacional.

Um personagem se destaca nessa história: Terezinha, a irmã de um dos fundadores, que foi espirituosa o suficiente para resgatar da redação, no dia do golpe de 1964, a coleção de exemplares – que provavelmente seriam destruídos pelos militares.

O acervo deverá ser disponibilizado on-line em breve.

Panair do Brasil

A mais importante companhia aérea brasileira voou de 1930 a 1965, quando foi abatida por uma canetada do regime militar que decretou sua falência – e abriu as portas para Varig, gaúcha como vários dos generais que davam as cartas.

O documentário Pan Air do Brasil, de Marco Altman, é outra referência de sobre como funcionavam as coisas nos tempos dos milicos – nessa época de tanto (e injustificado) saudosismo.

Allende, JB e coragem, 40 anos depois

No dia em que a deposição do presidente chileno Salvador Allende completa 40 anos, é sempre bom relembrar a aula de coragem e jornalismo que Alberto Dines, comandante do finado Jornal do Brasil, deu na edição do diário que relatava o golpe.

A notícia sobre a manobra que jogou o Chile num período sombrio com nome e sobrenome, Augusto Pinochet, não poderia ser o título principal da capa do periódico, ordenou a censura pilotada pela ditadura brasileira.

Pois bem, Dines criou o jornal sem manchete.

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O mea-culpa de O Globo

Muito importante o editorial do jornal O Globo no qual o veículo admite que ter apoiado o golpe militar de 1964 foi “um erro”.

“Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura”, começa o texto, um produto da era da transparência total – imposta pelo avanço tecnológico.

Mais. “À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma”.

Palmas.

Redação ou hospital?

“O jornalismo mudou muito. Hoje, quando vou a uma redação me sinto num hospital”.

A definição é do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que trabalhou como jornalista nos anos de chumbo em seu país (foi editor do diario Época, censurado pela ditadura civil-militar nos anos 70).

O manual de redação do camarada Kim Jong-il

O Columbia Journalism Review resenhou, a colega Dorrit Harazim repercutiu: o imperdível manual de redação redigido pelo próprio Kim Jong-il, o ditador da Coreia do Norte recém falecido.

“O grande guia dos jornalistas”, por sinal, está à venda na Amazon.

Só acredite lendo.

O dia em que os arapongas da ditadura descobriram como se faz um jornal diário

Simplesmente saborosa a descoberta do repórter Jailton de Carvalho, de O Globo, que revelou em sua edição de ontem o patético relatório produzido em 1972 por arapongas da Aeronáutica intitulado “Elementos suspeitos no O Globo”.

Nele, agentes infiltrados no jornal relatam que “elementos agitadores e subversivos” vinham tomando conta de postos-chave na redação do periódico carioca.

Gente esquisita como um “comunista que tem a seu cargo ler todas as matérias e, se achar que não estão boas, manda o repórter reescrever, modificando-a a seu gosto”. Prazer, araponga, esse aí é um editor.

Em outro trecho de antologia, o serviço secreto estranha que houvesse “notícias divergentes” entre uma edição e outra do jornal. Meus caros espiões, sejam bem-vindos ao segundo clichê.

Óbvio que o relatório carrega a paranoia típica dos anos de chumbo, mas revela também que o jornalismo é mesmo quase impenetrável para os leigos.

Quando dois concorrentes se complementam

Aconteceu na sexta-feira: tema de editorial da Folha de S.Paulo foi simultaneamente matéria em seu principal concorrente, O Estado de S.Paulo.

A Folha criticou a proibição de acesso público aos processos nos quais Dilma Rousseff foi ré durante a ditadura.

Exemplificou com o caso americano, onde candidatos (seja a qual cargo for) estão expostos a todo tipo de escrutínio e muitas vezes abrem espontaneamente seus arquivos pessoais. É cultural e considerado normal.

Ao mesmo tempo, Patricia Campos Mello, no Estadão, detalhou como funciona essa devassa consentida nas vidas dos postulantes a cargos públicos.

Uma feliz complementação.