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Wikipedia: ‘é um contrasenso acreditar que um projeto on-line pode superar questões de disputas de poder’

Minha conversa nesta semana é com Carlos d’Andrea, jornalista graduado pela UFMG, especialista em Gestão Estratégica da Informação e mestre em Ciência da Informação pela ECI/UFMG, além de coordenador do curso de Jornalismo da UFV, em Viçosa (MG).

O tema, a Wikipedia, umas das especialidades dele. E minha eterna preocupação: afinal, existe democracia dentro de um projeto colaborativo tão ambicioso e grande como o de Jimmy Wales?

Quem não é nativo digital tem uma dificuldade flagrante em compreender o processo de construção de reputação em projetos colaborativos de massa, como a Wikipedia. Não entende-se, por exemplo, que a frequência de participação dá muito mais pontos que a qualidade dela _ainda mais se for única. A Wikipedia é realmente um ambiente democrático e aberto à edição da inteligência coletiva? Quem manda na Wikipedia?
Acho que temos várias questões nesta pergunta. Há sim uma dificuldade não só dos usuários que não são nativos digitais, mas também dos que estão “presos” aos modelos tradicionais de produção de conteúdo e mesmo dos que associam a idéia de colaboração à simples criação de um espaço pessoal para publicação – blogs, por exemplo. Na Wikipédia, um espaço em que todos atuam no mesmo conteúdo em busca de um consenso provisório (e improvável) sobre um tema, torna-se indispensável o aperfeiçoamento de mecanismos de reputação para hierarquizar minimamente a participação do público.

A mensuração poderia ser mais quali do que quantitativa? É improvável que desse certo. Sabemos que mensurar qualidade de uma informação, ou de uma ação, é algo tão subjetivo que inviabilizaria o funcionamento do projeto na escala em que ele se propõe. Além do mais, a Wikipédia está baseada numa lógica operacional e ideológica calcada no TRABALHO. Mais do que gênios ou doutores, o projeto espera atrair operários, isto é, pessoas a se debruçar sobre ele de forma exaustiva.

Dizer se a Wikipedia é ou não um “ambiente democrático e aberto à edição da inteligência coletiva” é complicado. Em grande parte, é, mas é tão baseado em regras e hierarquias internas que passa a ser uma “democracia” que poucos compreendem e/ou têm a disposição de se engajar. É como se tantos fossem analfabetos que as eleições ficam sob suspeita…

Seria fácil dizer que quem manda na Wikipédia são os administradores, que são usuários que foram eleitos e possuem prerrogatigas técnicas. Mas talvez mais do que eles o que determina os rumos do projeto é uma forte vinculação ideológica com a proposta seguida por eles e a rígida estrutura organizacional que, ainda que voluntária e parcialmente descentralizada, norteia os editores.

Pedro Doria, diretor de mídias digitais do Grupo Estado, imagina o modelo de “matérias abertas” para o jornalismo do futuro/presente. Nesse caso, não com a participação direta do público, mas de jornalistas profissionais _pelo menos num primeiro momento. Você vê alguma esperança para o wikijornalismo prosperar, já que a própria Wikipedia é um sucesso também pela rapidez com que informações recentes sobre personalidades sejam agregadas aos verbetes?
Discuto uma possível “wikificação do jornalismo” em um artigo recém publicado em português no livro Metamorfoses Jornalísticas 2 e na revista BJR. Lá faço uma distinção que, aparentemente, é bem parecida com a que o Doria propõe: wikis só de jornalistas (ou pessoas previamente autorizadas) e wikis abertos, como a Wikipédia.

Acho que como os wikis têm um potencial tremendo como ferramenta para edição de conteúdo jornalístico, principalmente numa época em que a rapidez de produção tem se confundido com uma fragmentação excessiva do conteúdo publicado. A cobertura de eventos duradouros e temas mais complexos pode perfeitamente ser editada em um wiki, que serveria ainda como plataforma para armazenamento a longo prazo. A abertura ao público pode (e deve) acontecer de acordo com o grau de visibilidade do veículo e do assunto.

As frequentes situações de vandalismos em artigos de maior destaque na Wikipédia, inclusive daqueles vinculados a personalidades ou eventos recentes, mostram que a abertura total é inviável – tanto que na Wikipédia os editores tomam frequentemente medidas mais duras, com a proteção do artigo.

Eu não acho a Wikipedia democrática, ela é regida por uma liturgia que em muito lembra o poder fisicamente constituido. Se você pudesse mudá-la, onde mexeria?
Sim, lembra o “poder fisicamente constituído”, principalmente porque advém dele. Acho que todos nós gostaríamos, mas é um contrasenso e inocente acreditar que um projeto on-line poderia facilmente superar questões fundamentais de nossa sociedade, como disputas de poder e intolerância.

O grande desafio da Wikipédia – e se eu pudesse, mexeria nisso, claro – é aumentar a coordenação do trabalho e não associá-lo ao uso abusivo do poder. Há um outro aspecto que me incomoda muito na Wikipédia: no geral, sua interface ainda é muito pouco amigável para o usuário leigo.

Refiro-me primeiramente à própria linguagem de marcação usada no software MediaWiki, que é um empecilho para uma edição mais estruturada por um novato. Esta questão culmina, por exemplo, na dificuldade para se entender os processos internos de votação, discussão, socialização etc. Se a Wikipédia mensurasse a participação dos editores através de um karma (visualmente, inclusive) mais objetivo, como fazem sites de ediçao colaborativa (Digg), seus processos nternos seriam mais transparentes.

A Wikipedia é cada vez menos colaborativa

(Ilustração: NYT)

(Ilustração: NYT)

É fato: aos 8 anos e entre os dez sites mais acessados da web, a Wikipedia é cada vez menos colaborativa e caminha para se fechar totalmente em copas, deixando para os odiados administradores a tarefa de editar verbetes _o que, na prática, já vinha ocorrendo com frequência.

Agora, o produto símbolo da web 2.0 (outra denominação odiosa e, pior, picareta e marketeira) decidiu restringir a edição de entradas sobre pessoas vivas.

Isso já vinha sendo discutido desde o início do ano e, a partir de hoje, será assunto na Wikimania, em Buenos Aires.

O gigantismo do site (só em inglês já são mais de 3 milhões de artigos _a versão em português caminha para o milhão) seria a justificativa para o zelo, mesmo contrariando o espírito aberto da iniciativa. A conclusão da Wikipedia é que hoje não faz mais sentido abraçar a cultura do caos, mas sim oferecer um produto maduro e organizado.

Pela proposta, só editores “experientes, ativos e com alta reputação” poderão chancelar mudanças nos verbetes das personalidades vivas.

Ou seja, é a consagração da percepção de que a Wikipedia, que um dia já foi de todo mundo, tem cada vez menos donos. Carlos d’Andrea, que tem estudado bem de perto o fenômeno, vê a mudança por outro ângulo.

Leia mais sobre a Wikipedia no Webmanario

Passaralhos vitimam mais editores e redatores, não repórteres

Carlos d’Andrea destacou, em seu bom artigo “Collaboration, Editing, Transparency” [PDF, 155k] na última edição da Brazilian Journalism Review, uma matéria de Carl Stepp publicada em abril pelo American Journalism Review.

Stepp detectou que as principais vítimas dos passaralhos nas redações americanas são editores e redatores, não repórteres.

É falsa, portanto, a premissa de que a redução de custos na imprensa dos EUA teria relação direta com a diminuição do número de repórteres _que muita gente considera a peça mais importante da engrenagem jornalística_ na imprensa em geral.

Essa observação corrobora outra percepção, esta no jornalismo on-line, de que a cada dia diminuem as etapas entre a concepção do texto e o leitor. Na web, o repórter já possui hoje uma autonomia que o permite publicar, diretamente e sem filtros, um texto num site.

Ou melhor: atesta que repórteres estão assumindo funções cada vez mais relevantes no fechamento.

Como manter (ou subir, nosso desafio é subir) a qualidade assim?