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Na Espanha, jornais caem em piada xenófoba

Rolou um boimate legal semana passada na Espanha, este nascido na web: o Marrocos teria requisitado à Espanha metade do faturamento do monumento La Alhambra, uma espetacular fortaleza medieval em Granada, na Andaluzia, cuja construção começou no século 9.

O marroquino Boabdil foi o último rei mouro de Granada, expulso pelos reis católicos em 1493.

A bobagem surgiu como uma piada num site reacionário e acabou tomando os jornais.

É a tal “serpiente de verano” citada no texto sobre a gafe, termo próximo da nossa “barriga”.

Algumas considerações sobre o Enade

Questão 38 – Discursiva

Considere as linhas editoriais a seguir:
I. Jornal popular, geralmente criticado por ser sensacionalista, inventar e/ou omitir fatos e preocupar-se apenas em faturar, aumentar a tiragem, publicar notícias irresponsáveis, atrair e agradar certo público-leitor.
II. Jornal de grande porte, considerado mais responsável, por vezes esquece o verdadeiro interesse pela informação, manipulando a notícia em favor de outros interesses empresariais, financeiros, comerciais, etc. E, assim, poder incorrer em muitos erros.
Compare as linhas editorais, aponte as principais inconsistências desses veículos e proponha uma inovação que signifique avanço na relação mídia e sociedade.

Esta questão do Enade específica para o curso de Jornalismo desatou a loucura em meios acadêmicos e profissionais. Colegas, como o professor Nilson Lage, viram manipulação ideológica no teste.

“Cada uma das afirmações dadas como corretas representa uma posição da esquerda reacionária que pretende dominar a consciência das pessoas reproduzindo métodos nazistas e stalinistas: punir quem não concorda, até que o sujeito aceite para não ser punido e termine aderindo”, afirmou Lage.

Bem, a primeira conclusão que se pode tirar da prova é que ela ruim. Como quase todas, escrita num português que não é corrente. Os enunciados são oblíquos, vertiginosos, esfumaçados.

Outra conclusão bem objetiva sobre o teste é que ele foi bem abrangente. Falou de dispositivos móveis, blogs corporativos, assessoria de imprensa, Código de Ética, rádio e TV, direito na internet…

Não enxerguei ideologia no questionário exclusivo aos alunos de Jornalismo. Houve uma citação desairosa a Veja, é verdade (o delicioso caso Boimate), mas apenas para dar combustível às teorias da conspiração.

Mas… e a questão 38?

Pra mim ela é uma obra de ficção. Um exemplo inventado, digo.

Porém todos os jornais, em algum momento, passam pelas situações descritas. Mas isso jamais seria uma diretriz editorial.

Reclamar dessa questão é, claramente, assumir uma carapuça (aliás, apontar esse viés em qualquer aspecto da prova é assumir um fracasso, ainda que intelectual e pessoal).

Mas voltando ao assunto: um veículo jornalístico com essas premissas não sobreviveria à primeira esquina.

É essa a resposta correta, diga-se.

Um golpe no jornalismo cidadão?

Essa é muito boa para a pequena coleção de argumentos dos que costumam desvalorizar o jornalismo cidadão por uma suposta falta de credibilidade: no domingo, o iReport, espaço colaborativo da CNN, deixou passar uma história sobre Randall Stephenson, CEO da AT&T, que teria sido encontrado morto em sua “mansão multimilionária”.

Era mentira, um trote, mas o mais curioso é que a AT&T (provedor de acesso à web mais utilizado nos Estados Unidos) tomou suas próprias providências e bloqueou um dos fóruns mais movimentados da web americana na qual a informação já bombava e era debatida com fervor (do iReport a “notícia” foi excluída rapidamente).

Não foi a primeira vez que o iReport foi ludibriado por, digamos, engraçadinhos.

Evidente que a possibilidade de trotes não é uma exclusividade da era da conversação e altíssima tecnologia _eu vou voltar no tempo só até 1983, quando internet era um termo usado apenas por militares e alguns acadêmicos, para citar o caso Boimate, no qual a revista Veja foi enganada por uma brincadeira de 1º de abril.

São inúmeros esses “descuidos” editorais que remontam, certamente, à própria época de Gutemberg.

Não têm a ver, portanto, com a produção colaborativa de notícias. Mas é sempre bom repetir e reforçar, porque senão vai aparecer gente dizendo “tá vendo? eu sabia!”.

Isso não exclui a possibilidade de se fazer uma reflexão sobre qual o melhor processo de inserção do público dentro do noticiário.

O iReport, como se sabe, não possui moderação nem edição posterior, ou seja, as notícias ali publicadas (salvo se são mentirosas _mas de fácil checagem, convenhamos, senão jamais serão descobertas) não passam por qualquer jornalista profissional antes de ir ao ar.

Algumas, de tão boas, vão parar no site da CNN em pessoa (a empresa afirma que, até hoje, de quase 321 mil textos postados, 699 chegaram ao mainstream).

Pessoalmente, eu prefiro a mediação e a convivência pro-am, quer dizer, entre profissionais e amadores, o que dá origem ao jornalismo que conceituo como participativo _ou seja, o público efetivamente está participando de um processo. Falamos mais disso em breve.

O Caso Boimate revisitado: anatomia de uma barriga

Nasce um mito: a barriga mais célebre da história da imprensa brasileira

Nasce um mito: a barriga mais célebre da história da imprensa brasileira

A barriga mais célebre do jornalismo brasileiro completa, daqui a uma semana, 26 anos. Falo do boimate, história publicada pela revista Veja em sua edição datada de 27 de abril de 1983 _porém desde o dia 23 nas bancas.

A matéria (reproduzida acima) repercutia reportagem publicada pela ilibada revista New Scientist quase um mês antes, em 31 de março. Um infográfico (esse termo nem existia nessa época, usava-se “arte” mesmo) imenso tenta explicar o inexplicável. Pomposa, a resenha, que incluía aspas de um engenheiro genético da USP (busque por “Ricardo Brentane”) dava conta de um triunfo espantoso da engenharia genética: a fusão de células animais e vegetais.

O produto desta conquista era o boimate, como Veja apelidou. Em resumo, um tomate reforçado com células de gado que possuía uma polpa muito mais nutritiva e tinha “um futuro promissor na alimentação de pessoas”, como registra o texto do semanário da Editora Abril.

Ocorre que 31 de março é véspera de 1º de abril, data em que a mídia (principalmente a inglesa) costuma pregar peças em seus leitores. Até hoje essa tradição resiste.

A redação de Veja não percebeu as pistas, abundantes no texto, de que se tratava de um trote. Para começar, a fusão celular tinha sido obra dos pesquisadores Barry McDonald e William Wimpey _claras referências às redes de fast-food americanas McDonalds e Wimpy’s. Mais: ambos trabalhavam na Universidade de Hamburgo (ou Hamburg University, em inglês).

Veja não foi a única a cair no conto do boimate. A matéria da New Scientist foi lida parcialmente e debatida no Senado dos EUA durante uma audiência sobre as potenciais consequências ambientais da engenharia genética (procure por “McDonald”). Isso em setembro do ano seguinte, 1984.

Em 1983, o McDonald’s tinha uma loja havia dois anos em São Paulo _a primeira no país, dois anos mais velha, funcionava em Copacabana. A Wimpy’s, nem isso (a rede, ainda na ativa nos EUA, jamais desembarcaria no Brasil).

Era, também, bem mais difícil fazer jornalismo. Você ficava sempre com a sensação de que era o último a saber. Não havia internet nem Google, tampouco celular _logo, muito mais difícil localizar pessoas e checar a veracidade de fatos.

A própria telefonia, estatal e inoperante, deixava muitíssimo a desejar. Algumas ligações levavam horas para ser completadas para muitas vezes cair segundos depois. E dá-lhe discar (sim, o telefone era a disco e estropiava o seu dedo nessas mil tentativas).

O acesso a produtos impressos, então, proibitivo. Havia pesadas taxas sobre importação de livros, revistas e jornais. Mesmo assim, todos chegavam bem depois. No caso do jornal, com sorte, um só dia, mas revistas mensais (caso da New Scientist) ou semanais estavam pelo menos um período atrasados (às vezes dois ou mais).

O espaço entre o boimate original (31 de março) e o de Veja (23 de abril) revela exatamente o delay sobre o qual discorri acima. Normalmente, os jornalistas que viajavam ao exterior tinham a incumbência de trazer consigo na bagagem a maior quantidade de publicações possível. Era árduo saber o que a concorrência, especialmente os cachorros grandes, estava fazendo.

Para encerrar, as brincadeiras de 1º de abril na imprensa. Acho totalmente inadequadas. Felizmente essa bobagem inexiste no Brasil _a mídia de Espanha, Portugal e América Latina faz a mesma tolice e torpeza com seus leitores em 28 de dezembro, o dia da mentira deles (ao menos, sempre há fontes que enganam os jornalistas).

Não importa o quão estúpido seja o trote inventado, não me parece apropriado vindo de um veículo jornalístico.

Mas graças a eles o jornalismo deu à luz, há 26 anos, o boimate.

ATUALIZAÇÃO: Meu amigo André Marmota conta uma curiosa história de 1º de abril ocorrida no Brasil: foi em 1999, quando o jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, decidiu publicar uma capa inteira com notícias fake (entre elas, a contratação de Ronaldinho Gaúcho pelo São Bento, clube da cidade).