
Nasce um mito: a barriga mais célebre da história da imprensa brasileira
A barriga mais célebre do jornalismo brasileiro completa, daqui a uma semana, 26 anos. Falo do boimate, história publicada pela revista Veja em sua edição datada de 27 de abril de 1983 _porém desde o dia 23 nas bancas.
A matéria (reproduzida acima) repercutia reportagem publicada pela ilibada revista New Scientist quase um mês antes, em 31 de março. Um infográfico (esse termo nem existia nessa época, usava-se “arte” mesmo) imenso tenta explicar o inexplicável. Pomposa, a resenha, que incluía aspas de um engenheiro genético da USP (busque por “Ricardo Brentane”) dava conta de um triunfo espantoso da engenharia genética: a fusão de células animais e vegetais.
O produto desta conquista era o boimate, como Veja apelidou. Em resumo, um tomate reforçado com células de gado que possuía uma polpa muito mais nutritiva e tinha “um futuro promissor na alimentação de pessoas”, como registra o texto do semanário da Editora Abril.
Ocorre que 31 de março é véspera de 1º de abril, data em que a mídia (principalmente a inglesa) costuma pregar peças em seus leitores. Até hoje essa tradição resiste.
A redação de Veja não percebeu as pistas, abundantes no texto, de que se tratava de um trote. Para começar, a fusão celular tinha sido obra dos pesquisadores Barry McDonald e William Wimpey _claras referências às redes de fast-food americanas McDonalds e Wimpy’s. Mais: ambos trabalhavam na Universidade de Hamburgo (ou Hamburg University, em inglês).
Veja não foi a única a cair no conto do boimate. A matéria da New Scientist foi lida parcialmente e debatida no Senado dos EUA durante uma audiência sobre as potenciais consequências ambientais da engenharia genética (procure por “McDonald”). Isso em setembro do ano seguinte, 1984.
Em 1983, o McDonald’s tinha uma loja havia dois anos em São Paulo _a primeira no país, dois anos mais velha, funcionava em Copacabana. A Wimpy’s, nem isso (a rede, ainda na ativa nos EUA, jamais desembarcaria no Brasil).
Era, também, bem mais difícil fazer jornalismo. Você ficava sempre com a sensação de que era o último a saber. Não havia internet nem Google, tampouco celular _logo, muito mais difícil localizar pessoas e checar a veracidade de fatos.
A própria telefonia, estatal e inoperante, deixava muitíssimo a desejar. Algumas ligações levavam horas para ser completadas para muitas vezes cair segundos depois. E dá-lhe discar (sim, o telefone era a disco e estropiava o seu dedo nessas mil tentativas).
O acesso a produtos impressos, então, proibitivo. Havia pesadas taxas sobre importação de livros, revistas e jornais. Mesmo assim, todos chegavam bem depois. No caso do jornal, com sorte, um só dia, mas revistas mensais (caso da New Scientist) ou semanais estavam pelo menos um período atrasados (às vezes dois ou mais).
O espaço entre o boimate original (31 de março) e o de Veja (23 de abril) revela exatamente o delay sobre o qual discorri acima. Normalmente, os jornalistas que viajavam ao exterior tinham a incumbência de trazer consigo na bagagem a maior quantidade de publicações possível. Era árduo saber o que a concorrência, especialmente os cachorros grandes, estava fazendo.
Para encerrar, as brincadeiras de 1º de abril na imprensa. Acho totalmente inadequadas. Felizmente essa bobagem inexiste no Brasil _a mídia de Espanha, Portugal e América Latina faz a mesma tolice e torpeza com seus leitores em 28 de dezembro, o dia da mentira deles (ao menos, sempre há fontes que enganam os jornalistas).
Não importa o quão estúpido seja o trote inventado, não me parece apropriado vindo de um veículo jornalístico.
Mas graças a eles o jornalismo deu à luz, há 26 anos, o boimate.
ATUALIZAÇÃO: Meu amigo André Marmota conta uma curiosa história de 1º de abril ocorrida no Brasil: foi em 1999, quando o jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, decidiu publicar uma capa inteira com notícias fake (entre elas, a contratação de Ronaldinho Gaúcho pelo São Bento, clube da cidade).