Ajudei a destruir a profissão

É uma reclamação frequente entre aqueles que, como eu, compõem o bloco da meia idade: a nova guarda não seria, digamos, tão afeita ao trabalho como fomos quando jovens, décadas atrás.

Essa espécie de constatação surge toda vez que vemos gente em começo de carreira declinar de oportunidades que, olhadas sob lupa, exigem muito mais do que simplesmente esforço pessoal. Há coisas nas redações que simplesmente vilipendiam a condição humana – mas que tirávamos de letra sob a justificativa da pena eterna imposta a quem se aventura no ofício.

Explico: acostumada a tratar o jornalismo como um ato de fé, minha geração aceitou trabalhar por migalhas e ajudou a destruir a profissão.

É por isso que hoje eu festejo quando vejo jovens recusarem as propostas indecentes com as quais o jornalismo acena e que, em nosso tempo, nos faziam sair correndo abanando o rabinho.

Trabalhei com uma pessoa, hoje gestora numa importante operação jornalística na internet, para quem “jornalista que não trabalha pelo menos dez horas por dia é vagabundo”. É esse tipo de tirada verbal, associada às oportunidades globais que antes não existiam, que fazem o trabalho nas redações cada vez menos atraentes.

Estamos destruindo o futuro da profissão ao perpetuar bobagens como o trabalho 24 horas por dia ou o presenteísmo, essa instituição tão jornalística e que é um dos primeiros passos para a burocratização das relações de trabalho numa atividade claramente intelectual. Ou que deveria ser, pelo menos durante a maioria do tempo.

Não me esqueço da decepção de pessoas de outra formação ao serem apresentadas às regras (escritas e não escritas) do jornalismo – que aliás nunca dialogaram com os contracheques. O discurso do amor pela profissão e só, felizmente, já não funciona mais como antigamente.

Se minha geração tivesse sido mais crítica contra essas armadilhas, talvez estivéssemos numa situação um pouco melhor.

8 Respostas para “Ajudei a destruir a profissão

  1. Gostei da sua declaração, mas afirmo, as redações também estão fechadas para quem “ainda” ama a profissão. Hoje o esquema de indicação é tão forte que não oferece oportunidade para quem oferece até trabalhar de graça, somente pelo amor ao jornalismo.

    Sou formada em jornalismo em 2010 e NUNCA consegui uma oportunidade em redação sequer. Nenhuma abriu as portas para mim. Cheguei a oferecer trabalhar por uns meses, sem receber nada, somente para que vissem o quanto eu amo e o quanto posso ser uma boa jornalista. Mas a resposta foi sempre a mesma e, sem opções, fui para o marketing.

    Não me considero Jornalista e tenho a certeza de que somente não fui, por que não me deixaram ser.

    Há uns anos, as redações aceitavam os apaixonados, hoje não mais.

  2. Vou ter de discordar. Fomos e somos profissionais fruto de nosso tempo, e com talhados para as necessidades do jornalismo diário/semanal em veículos de comunicação. Jornalistas que tiveram a chance de trabalhar em redações entre 1980 e 2000 o fizeram no melhor momento de nossa imprensa e quando os salários começaram a melhorar – ainda que continuassem indecentes, para ver como era antes. O raciocínio “ajudei a destruir a minha profissão”, em tese, poderia ser aplicado também aos jornalistas que trabalharam,. por exemplo, entre 1955 e 1970, onde claramente as redações eram bem menos profissionais e com salários menores – embora na época o avanço editorial tenha sido muito importante e tenha produzido uma geração inteira de excelentes jornalistas. E não há como dizer que esses profissionais antigos estragaram a profissão por se submeter a muitas situações atrozes e amadoras. E trabalhar ou não dez horas por dia não é o problema, nunca foi. A questão é trabalhar dez horas ou mais inutilmente, como nos absurdos pescoções. O próprio autor poderá falar de cátedra: trabalhar 20 horas ou mais em uma grande reportagem ou grande cobertura é sacrificante, mas gratificante diante de um resultado final de alta qualidade. Ou não foi assim quando o senhor se matou de trabalhar no Rio de Janeiro em 2000, Alec Duarte, quando o Corinthians ganhou o torneio internacional da Fifa? Pode-se apontar algumas outras omissões da categoria que podem ter ajudado a colocar a profissão momentaneamente em baixa, todas podem até corresponder, mas o fato de ter trabalhado muito e bem jamais pode ser indício de destruição de profissão. Acho mais aceitável apontar, por exemplo, a submissão de jornalistas à lógica administrativa burra das redações, comandada por jornalistas, na maioria das vezes, onde se acreditava que a redução de gastos e despesas diversas não teria impacto na qualidade do conteúdo, pelo menos não a curto prazo. Isso sim é algo que pode perfeitamente ter ajudado a fragilizar (e não destruir) a profissão.

  3. Se me permite, assino contigo Marcelo Moreira.

  4. Concordo em vários, vários graus. Mas não é somente em redação não. Antes de virar editora de cultura em um impresso, eu fui assessora de imprensa por 4 anos. Ganhava menos que em uma redação pra trabalhar mais. Minha carga era de oito horas, só que eu fazia eventos, coberturas, então facilmente trabalhava até doze horas em alguns dias da semana. Ganhava R$ 1200 na época (faça as contas sobre quanto era descontado, ou seja, líquido dava uns R$ 980), pra trabalhar esse tempo, sem benefícios. Isso porque era a maior empresa do segmento na cidade. Meu trabalho era tão árduo quanto na redação e não saia meu nome em nada, como ocorre em veículos. Exigiam ainda: conhecimento em fotografia, em programas de edição, em mídias sociais, em muita coisa. Sai da empresa descontente com o trabalho, virei repórter por R$ 1500. Um ano depois virei editora. Esses dias olhando uma vaga pra assessor, a empresa solicitava oito diferentes conhecimentos além da graduação em jornalismo, o oferecia um salário de R$ 1300, sem benefícios, carga de 8 horas. Ou seja, não mudou nada. Não é somente dentro da redação que somos desvalorizados. Eu acho que é bem bonito mesmo se matar pra ver a melhor reportagem no ar, na página, só que as contas vencem. A luz corta. Quer a melhor reportagem? pague o salário decente. Quer que a gente trabalhe tanto? pague as horas extras. Onde vivo raros veículos mantém isso em prática. Quanto à outra questão comentada, a dos ‘indicados’, concordo. Você compete com muita coisa, enfrenta o dono do veículo, o anunciante, o jabá, e ainda por melhor que seja, enfrente o q.i. Nossa classe é desunida, e acho que essa dinâmica de que os novos jornalistas não se matam mais por migalha, olha, acho um avanço. E só na nossa profissão que existe a desculpa do ‘amor’ pra não pagar um salário decente. Trabalho é trabalho, médico ganha, advogado tem piso, engenheiro tem ordem, sindicato. A gente que continua acenando de longe. Chega. Trabalhar dez horas por dia sem remuneração e condições decentes é sim, o problema. Jornalismo não é caridade, muito pelo contrário.

  5. Tudo isso sem falar na credibilidade, que já escoou pelos ralos das redações. Sou leitor de barbas brancas. Acompanho a derrocada da mídia há décadas. Tudo virou um grande negócio, com ética e irresponsabilidades próprias! Ou seja, nenhuma!

  6. O mesmo acontece na área de design, jobs pra ontem, exigência de super criatividade e prêmios, profissionais que escrevem, programam, editam, viram cambalhotas e são ninjas. Sigo tentando não desistir e não me prostituir, resistir… Espero que as gerações futuras não sobrevivam por amor e trabalhem para viver melhor.

    Aproveito para compartilhar esse texto de um designer espanhol muito consciente sobre esse mesmo assunto: http://graffica.info/exito-fama-o-reconocimiento/

  7. Neguinha tu é o maximo!Na verdade reconstruistes a profissão.Saborosa meia-idade.Ainda usa meia-calça.?.só vc me faz lembrar Pompeu de Souza..Não era msm um pom-pom?

  8. Esse é o texto mais lúcido, sincero e conciso que já li sobre a realidade do jornalismo. Sempre observei da mesma forma e sempre critiquei, junto a meus colegas, o “orgulho de ser escravo”, tão comum no meio.

    Jornalista tem que se saber mais trabalhador e menos missionário. Ser (bem) remunerado por um trabalho honesto não o torna menor.

    Parabéns pela missiva. Vou divulgá-la por aí.

    Abraços.
    Morgado.

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